quarta-feira, 13 de agosto de 2008

I.R.A.



Fotoarte - Vista da Rocinha 003/ Ricaru




Ou, Iranilda na Rocinha Afetivamente.

Nordestina como tantas e tantas migrantes que vieram para o Rio, numa época de esperanças em busca de uma vida melhor, ela, Iranilda da Silva Santificada (Ira pros amigos) nada a ver com o Irish Republic Army! I.R.A., milícia terrorista cristã assassina Irlandesa que aterroriza e mata mesmo, pra valer. A nossa Ira, veio com o seu primeiro marido e cinco dos seis filhos (o mais novo ficou no “norte”) pro Rio maravilha.
A danada já esta na cidade maravilhosa (leia-se rocinha) há mais de vinte anos, ela me conta que já faz tanto tempo que nem lembra mais.
Atualmente é diarista, faxineira e carregadora de pedras nas horas vagas, ou seja, autônoma.
Mas já foi “bem de vida” me contou certa vez que tinha negócio próprio de transporte de gente e que o primeiro marido “botou tudo a perder”.

- Foi mulher sabe! Hahahahahahahahahahaha!
-Sei.
-O danado foi vendendo os carros, sabe daqueles grande de transportar gente, e eu se não abro dos olhos ele vendia também até o meu chão! Hahahahahahahahahahaha!
- E depois?
Depôs ele foi-se embora, foi-se! Cum as mulher, quengar. Me deixou na mão. Hahahahahahahahahahaha!
- Sei...

Duas vezes por semana ela vem a casa de minha mãe e faz a limpeza da casa, coisa que por sinal, faz muito bem com um capricho sem igual. Mulher forte, parece até Sertaneja (mas é do litoral). Limpa tanto que minha mãe até reclama e diz:

- Essa mulher só pode ser doida!
- Sou mesmo dona Maria, sou doidinha! Hahahahahahahahahahaha!
- Mulher eu não já lhe disse que não precisa limpar tanto, ninguém sente nem uma poeirinha no pé!
- Ah! Sabe o que é dona Maria, é que eu tenho uma impaciência. Num posso ver chão que logo vou limpado. Hahahahahahahahahahaha!
- Mas mulher limpe com o rodo, coloque o pano do rodo pra ficar mais fácil.
- Se incomode não dona Maria, eu prefiro limpar assim mesmo, ajoelhada porque vejo a sujeira melhor e limpo mais direito, né! Hahahahahahahahahahaha!

Coisas assim, desse tipo.
Ira não dá moleza a sujeira, mas tem umas coisas que nem lhe conto, minha mãe fica até nervosa as vezes.
A primeira peculiaridade é que Ira não chega cedo nem a pau! Só lá pras dez!
É ela só chega lá pelas dez da matina, pois o atual marido dela o Chiquinho sai muito cedo, ela tem que se acordar de madrugada pra preparar a marmita do Chiquinho pra ele levar para o trabalho. E depois, dorme outra vez! Aí já viu não é mesmo, pra acordar de novo só lá pras nove e Ira se atrasa outra vez. Outro dia ela até me confidenciou que tinha perdido o trabalho na casa da irmã do Doutor por isso. A patroa a despediu porque ela não chegava cedo.
Mas ela também não se rebaixa e diz logo que também aquela patroa e aquela casa “... era assim maisomenu.”
Outra das tantas mugangas da Ira é a arrumação desarrumada, a danada limpa tudo cada coisinha peça por peça detalhadamente, vira a casa de pernas para o ar. Mas em compensação (não sei se isso é ruim, eu pessoalmente gosto) cada vez que a Ira vem a casa fica com uma decoração nova, cada coisa que ela limpa toma novo assento, nova localização.
É a arrumadeira mutante ninja.
A propósito disso tem um causo incrível:

Me diz ela.

- Foi no primeiro dia sabe!
- Sei.
-Eu era novata e a mulher não me explicou tudo, o Sr. sabe como é que é! Hahahahahahahahahahaha!
- Sei.
Tem que dizer tudo, mostrar tudo, e de que jeito ela quer que fique, né mesmo? Hahahahahahahahahahaha!
- É verdade.
- E pra completar a mulé ainda me provocou!
- De que jeito?
- Ela disse de odiavaaaaa sujeira, que não suportova pó!
- Nossa! Essa doeu.
- Pois é, pro senhor vê. Eu comecei a limpeza e fui de cômodo em cômodo, o Sabe como eu sou caprichosa. Tudo quanto era de poeira, sujeira fui limpando até encontrar um vaso assim mais ou menos do tamanho de um jarro de flores. Um vaso preto, com uma tampa preta! Quando abri o vaso tava sujo, fedendo cheio de pó! Eu não tive dúvidas, levei o jarro pro banheiro, joguei o pó na privada, dei descarga e depois fui lavar. Lavei bem e deixei o danado brilhando.
Coloquei lá e continuei a limpeza da casa.
- E daí?
- O Senhor não imagina!
- Imagino!
- Só ouvi o grito, o choro, o desespero a mulher gritava!
- MEU MARIDO!
- Eu saí desatinada e fui ver o que tinha acontecido e ela só dizia!
- MEU MARIDO, CADÊ MEU MARIDO?
- E eu que sei minha senhora, o que aconteceu com seu marido?
- ELE ESTAVA AQUÍ NA URNA, CADÊ MEU MARIDO?
- URNA? Que urna?
- Aquele vaso preto!!!!!!!!!
- Olha, eu travei! Como é que eu poderia saber que o pó que tava no tal vasinho preto era do marido dela! Hahahahahahahahahahaha!
- O QUE VOCÊ FEZ COM O MEU MARIDO!
- Olha a senhora me desculpe mais eu joguei na privada! E dei descarga. AGORA NÃO TEM MAIS JEITO NÃO.

Pronto! É assim a Ira, uma alma boa mesmo em meio a tantos desfazeres da vida.

Cada dia ela me chega vem logo me contar sobre uma novidade da rocinha, ou da vida dela. E diz que tava anunciado que o pessoal do tráfico tinha avisado que iriam atacar o Vidigal, que era pra ela ficar tranqüila pois a comunidade da rocinha não seria atingida, e assim foi.
Creio que vocês viram na TV, transito interrompido, black-out, batida e invasão policial. Ira news já sabia de tudo. Cada dia que Ira vem é uma resenha! Uma hora me conta da história do filho que entrou pro tráfico, fez merda, o danado achou de roubar o toca-fitas (som) logo do carro do chefe do tráfico!
Pois é ele teve que fugir senão já tinha sido morto pelo dono do ponto.
O homi (fala baixinho como se ele pudesse ouvir), me avisou pra ele dar o fora, em minha consideração sabe seu Ricardo, disse que dava um dia pra ele se escafeder daqui!

Mas ela é respeitada. Resolveu construir um barzinho e fez uma puxadinha na casa dela. Quando já ia abrir, vem a presidenta da associação de moradores da favela e diz que ela não vai abrir. Entre discussões e brigas a ira que não é besta nem nada foi ver o chefe do tráfico.

- Fui logo falar com a autoridade né mermo!

Me disse que tremia mais que vara verde, quase se mija de tanto nervoso. Mas foi. Explicou a ele o acontecido e pediu pra abrir e funcionar o seu bar, ele disse pra ela que ela era considerada e permitiu. Disse que qualquer bronca mandasse falar com ele.

-E assim! A justiça do morro não tem burocracia! O senhor nem imagina se o morador da comunidade não andar direito a bala come.

- E como foi o fim da estória do seu barzinho?
- Ela, a presidenta me chega com um negão e uma marreta pra botar o meu bar abaixo e eu disse “Bota!” que depois você se explica ao chefe! Pronto. A mulher amarelou e recolheu o negão a marreta e tudo mais e foi embora cum o rabo entre as pernas.

As aventuras e desventuras de Ira são suficientes pra escrever um livro. Mas o que mais me encantou nela foi seu espírito de alto astral, seu bom humor e sua disposição pra viver.
Ri com facilidade, ri da própria miséria.
Tem valores e uma percepção “adaptada” a realidade dela.Um misto de Nordestina e Carioca (um sotaque diferente), uma Brasileira como tantas, uma alma que nos representa muito bem sim senhor.

Fui muitas vezes a convite dela, comer beber, caminhar morro acima e abaixo, fomos ao Laborioux (onde só entra quem tem permissão), comi do bom e do melhor, freqüentamos os forrós, dançamos muito e conheci uma pá de gente de bem, e outras nem tanto da comuidade.

Creio que não poderia ser de outra forma a minha despedida do Rio de Janeiro, a cidade que ainda continua maravilhosa e que tem essa gente, que vive apesar de toda a violência real e da violência midiística (promovida pelos interessados na cultura da violência).

Estou voltando pra minha terra.
Parto do Rio, depois de uma estada maravilhosa, onde vi e revi, lugares e pessoas queridas, passeei, visitei tantos eventos, bares bodegas e armazéns que sem pretensão,poucos cariocas conheceram,visitaram e freqüentaram.

Volto pra Maceió cheio de saudades e com novos olhos e idéias, fruto dessa minha vivência. Espero não demorar tanto para voltar ao Rio.
Aqui agente se nutre de coisas importantes para a alma.
Aguardem-me que as minhas lentes e retinas estão chegando pra ver e declarar todo o amor a nossa Maceió, nossa Alagoas.

Inté Já!

Isso, entre otras cositas mas, aconteceu após 3 meses de estada no Rio em 2004


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